Por Luan de Melo Xavier¹
No universo distópico de “Olhos de Pixel”, do autor brasileiro Lucas Mota, qualquer ação pode ser realizada com um simples piscar de olhos. Esse avanço decorre da inserção de implantes tecnológicos, denominados smartself, no organismo humano. Empresas subordinadas ao governo controlam essa tecnologia, permitindo que os indivíduos acessem e-mails, realizem transações comerciais e executem diversas outras funções. No entanto, a aparente “liberdade” proporcionada pelos dispositivos expõe os usuários à exibição compulsória de propagandas e à cessão automática de seus dados pessoais a corporações privadas, que os utilizam para direcionar produtos e serviços conforme as supostas necessidades dos consumidores.
Paralelamente, a Santa Igreja de Salomão consolidou-se como a instituição mais poderosa da sociedade, exercendo rígido controle sobre os fiéis e ditando suas condutas. Sua legitimidade e influência ampliaram-se significativamente após a “vinda de Jesus”, um homem cuja imagem se tornou onipresente no espaço urbano por meio de outdoors e telões estrategicamente posicionados. Esses dispositivos funcionam como veículos para a disseminação de sua mensagem à população. É nesse contexto que Mota, então, insere uma das protagonistas dessa história: Nina Santelles.
Habitante do submundo, Nina é uma root, pois hackeou seu smartself, garantindo a liberdade necessária para não se submeter às normas impostas pelas corporações. Esse ato de desobediência impede que seus dados sejam compartilhados com empresas, permite-lhe acessar redes restritas à população em geral e a livra das propagandas projetadas diretamente em seu cérebro. No entanto, ao adotar esse estilo de vida arriscado e contrário às regras estabelecidas, ela se vê diante de um dilema: manter sua identidade e autonomia ou proporcionar uma vida melhor para seu filho, Paulo. A reconciliação com o filho, após anos de um relacionamento conturbado, revela-se um desafio significativo. Desde que se tornou uma root, sua presença na vida de Paulo tornou-se esporádica, sobretudo devido ao seu papel de liderança em um grupo formado por outros dois roots: Tera e Iza, personagens carismáticos que desempenham papéis essenciais na trama.
Após falharem em um plano de roubo e serem capturados, Nina, Tera e Iza se veem em uma situação crítica. Como condição para a liberdade, o trio se torna peça fundamental em uma missão para localizar o hacker conhecido como Kalango, acusado de ter furtado um arquivo sigiloso pertencente à Santa Igreja de Salomão. A partir desse momento, novos personagens fundamentais para o desenvolvimento da trama são introduzidos. Entre eles, destaca-se Lídia Gaber, uma policial íntegra, guiada por um forte senso de justiça. Ela se torna um elo de confiança para Nina, permitindo assim, uma cooperação inicial entre a mãe de Paulo e a instituição que tanto despreza. Outro personagem de relevância é o apóstolo Félix Marciano, um homem de grande influência que não medirá esforços para eliminar qualquer ameaça à soberania da organização à qual está vinculado.
Feita a contextualização do enredo, podemos agora abordar a temática central da obra. Na narrativa de Lucas Mota, a Santa Igreja de Salomão exerce um poder centralizado sobre o país, controlando-o de maneira quase absoluta. A problemática apresentada pelo autor é tanto atual quanto relevante, especialmente no contexto brasileiro, onde o conservadorismo cresce de forma acentuada, e seus adeptos promovem ideais preconceituosos e hostis a grupos sociais que não se alinham com seus valores e visões de mundo, como minorias étnicas, LGBT+ e aqueles que defendem a pluralidade e a diversidade de pensamento.
De acordo com o linguista britânico Norman Fairclough, um dos principais teóricos da Análise Crítica do Discurso (ACD), o discurso, enquanto prática política, pode estabelecer, manter e transformar as relações de poder e as entidades coletivas. Partindo desses pressupostos, o discurso como mecanismo de controle pode ser observado tanto na obra futurista “Olhos de Pixel” quanto em nossa sociedade contemporânea, onde é possível identificar inúmeros “comerciantes da fé”, frequentemente chamados de conservadores, que utilizam da religião para subjugar minorias e exercer domínio sobre as massas de fiéis que os seguem.
A Santa Igreja de Salomão adota diversas estratégias para difundir sua ideologia autoritária, como a exploração da figura de Jesus para fins de marketing, o uso de implantes neurais que controlam as percepções e ações dos fiéis, e, sobretudo, um discurso que incentiva a aniquilação de minorias. No romance, essas minorias são representadas por Nina (queer), Tera (homem trans) e Isa (bissexual). Em razão de suas identidades LGBT+, eles são rotulados como “antifamília”, perseguidos e forçados a viver à margem da sociedade. “Olhos de Pixel” convida, assim, à reflexão sobre como o fundamentalismo religioso pode determinar quem tem o direito de existir.
Historicamente, a ascensão de instituições religiosas como forças controladoras do Estado esteve atrelada à instrumentalização do discurso religioso para a manutenção e/ou criação de preconceitos e perseguições. Assim como na obra de Mota, indivíduos que não se adequavam às normas impostas tornaram-se vulneráveis, sujeitos à marginalização e à violência. Dessa maneira, uma leitura crítica do romance possibilita ao leitor identificar paralelos com eventos históricos e refletir sobre os riscos que a fusão entre religião e Estado representa para a preservação da democracia.
"Olhos de Pixel" é, sem dúvida, uma obra impactante e repleta de ação. Lucas Mota domina as principais características do movimento literário cyberpunk, combinando-as a críticas sociais relevantes ao Brasil atual, especialmente em relação ao fanatismo religioso, à mercantilização da fé, ao capitalismo e à privatização das forças policiais. Com um ritmo ágil e repleto de reviravoltas, a narrativa prende o leitor do início ao fim. O Prêmio Jabuti recebido na categoria “Romance de Entretenimento” foi mais do que merecido.
¹ Luan de Melo Xavier é graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Contato: luankg44@gmail.com
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