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"Essa Gente", de Chico Buarque de Hollanda

Writer: LiteristóriasLiteristórias

Por Thamires Paes dos Santos*

thamipaes@hotmail.com

Os planos narrativos de "Essa gente" (2019), de Chico Buarque, se organizam em três temporalidades. A primeira temporalidade remete aos tempos da corte real portuguesa no Rio de Janeiro, no começo do século XIX, período em que o Rio se via como centro de todo um império. Essa temporalidade é exposta através de romance do personagem Duarte (que é escritor), intitulado "Eunuco do paço real". A segundo temporalidade se trata da década de 1950, período de Orfeu Negro e da infância de Duarte, em que o Rio vivia os anos dourados, de muita bossa nova e de expectativas para o futuro. Por fim, a terceira temporalidade não é nem de centro de um império, ou de um lugar de expectativa. Trata-se do Rio de Janeiro da atualidade, terra de miliciano e pastores, sem grandes esperanças.

Em certo ponto do livro, Duarte compara o Rio de Janeiro com sua mãe: "Há manhãs em que desço as persianas para não ver a cidade, tal como outrora recusava ver minha mãe doente. (...) Apesar de tudo, assim como venero a mulher incauta que me deu à luz, estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci" (página 48). O Rio de Janeiro ocupa, portanto, um plano de fundo muito importante para Duarte. Ocupa um lugar que lhe causa abandono, e que Duarte retribui com certa fascinação. Essas simbologias, por vezes ditas na cara, por vezes colocadas lá como uma das miniaturas de Andrea del Fuego, são essenciais para o livro de Buarque.

A estátua do presidente e o gosto kitsch de sua ex-mulher, Rosane, trazem uma simbologia em um nível mais próximo à superfície da realidade brasileira. Já os sonhos de Duarte e o próprio formato da obra podem apresentar mais camadas de representação. Cada entrada do livro, dividida não por capítulos, mas por dias, dão uma mostra da errância em que o protagonista se encontra. Em um dia ele coloca pensamentos em primeira pessoa, no outro ele se imagina no lugar de Rosane, Maria Clara, ou mesmo da estátua. Em uma entrada ele fala de uma narrativa, no outro há a reprodução de uma ordem de despejo ou de uma reclamação de condomínio.

Essa errância toda também simboliza as infinitas crises pelas quais Duarte passa. Crise de concentração (atenção fragmentada), crise de meia-idade, crise de masculinidade, crise de afeto, entre outras. A crise, no entanto, não é só de Duarte e se relaciona com uma crise de toda uma realidade. Se Duarte tem problemas com a própria masculinidade e vê mulheres (ainda mais as vulneráveis) apenas como possíveis relações sexuais, fica difícil não se lembrar de Lísias falando do problema que o homem brocha é para o Brasil. Parece, nesses livros, que os brasileiros têm escolhido apenas dois lados: ou ser passivo e subserviente a tudo, ou querer resolver na base da violência para se afirmar, como o personagem Agenor.

Duarte, a exemplo de Brás Cubas ou o conselheiro Aires, parece um subterfúgio vindo do mundo dos mais abastados, para falar de uma realidade como um todo. Se Machado de Assis tinha no seu subtexto muitas menções e reflexões sobre a escravidão e as violências do Brasil, Chico Buarque usa Duarte para organizar – se é que a palavra certa seria organizar, dado o caos – a atual realidade brasileira. Assassinatos são comemorados, absurdos na política acontecem, o mau gosto impera, violências são constantes, e Duarte assiste a tudo fazendo parte desse mundo também. Sendo arrastado pela crise e pela desesperança. Por isso o título, "Essa gente", ao mesmo tempo em que distancia Duarte dos outros, o coloca no meio. Duarte também está dentro do livro, também faz parte dessa gente. E numa outra cruel representação (e cruel realidade) fica o questionamento, através do filho de Duarte, que não o ouve, nem se comunica com ele, das gerações mais novas. Estariam os jovens fechados apenas para os mais velhos, ou para a realidade como um todo?



* Thamires Paes dos Santos é formada em História pela Unicamp e graduanda em Letras – Português pela UFMG. Atualmente atua como professora da rede estadual de Minas Gerais, lecionando História no Ensino Fundamental II.

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